Já faz mais de um ano em que assistimos ao genocídio na Faixa de Gaza através dos nossos smartphones. Neste período, o debate público, pautado principalmente pela mídia corporativa, foi nos levando a desenvolver diferentes reflexões sobre os fatos noticiados. Logo após os ataques do Hamas em 7 de Outubro de 2023, que serviram de faísca para este novo ciclo de violência, o debate girou em torno de se os ataques israelenses eram ou não uma medida legítima de “autodefesa”.

Mas, não houve uma conclusão porque logo já estávamos tentando entender a ideia de “danos colaterais” e quantas vidas palestinas valem assassinar para atingir um ou outro alvo militar do Hamas. Depois, vimos carregamentos de água potável, comida e remédios serem proibidos de entrar em Gaza e serem destruídos por civis israelenses sob o olhar cúmplice do seu exército, além do ataque direcionado a grupos de ajuda humanitária compostos por estrangeiros, supostamente neutros no conflito. Porém, novamente, antes dessa informação ser processada e ações serem tomadas, passamos a discutir se o que estava ocorrendo se tratava, ou não, de um genocídio.

Ser ou não ser não é mais uma questão. Por meio de relatos nas mídias sociais e da cobertura jornalística daqueles veículos que ainda consegue atuar em Gaza, a população local mostra a forma exata como acontece um genocídio. Minha ancestralidade judaica me faz pensar em como teria sido a história do meu avô, que teve de fugir do regime nazista quando ocuparam sua cidade natal, Cracóvia, na Polônia, e foi forçado a morar num campo de detenção na União Soviética. O que ele teria retratado se já naquele tempo houvesse TikTok?

É curioso que o Direito Internacional Humanitário, como concebido hoje, tenha sido formulado justamente após a Segunda Guerra Mundial, quando foi possível tomar conhecimento do genocídio que o regime nazista cometeu com o povo judeu e cigano, e com as populações negras, LGBTQIA+, e com aqueles que apoiavam o socialismo. Sua intenção foi objetiva, e ficou marcada ao longo de toda a minha educação pela frase “Nunca Mais.”

A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, criou-se um arcabouço legal para promover a prevenção de novos genocídios e impedir que populações civis fossem atingidas pelos conflitos bélicos. Para isso, utilizou-se a ciência do Direito, que possui uma destacada habilidade em tipificar e regulamentar crimes. Isso possibilita que os debates não girem em torno de se o fato “é” ou “não é” crime, mas sim sobre como, quanto e quem é seu perpetrador e responsável penal.

O vigente arcabouço legal, com diversas instâncias e estatutos para distinguir e rapidamente determinar se existe um genocídio em curso, supostamente serve para que este possa ser evitado. Porém, isso não só tem falhado miseravelmente no caso da Faixa de Gaza, como também testemunhamos o mesmo modus operandi israelense se expandindo para o sul do Líbano.

Os direitos são garantidos pelo Estado, a única entidade capaz e legítima para fazê-lo. Estes são os que de fato executam as práticas que garantam com que os direitos sejam cumpridos. Cada Estado se responsabiliza pelo cuidado e garantia dos direitos de seus cidadãos, ao menos na teoria. Uma pergunta feita lá atrás pela filósofa Hannah Arendt foi “e quem cuida dos direitos daqueles que não possuem um Estado?”. Ela se refere aos apátridas: aqueles que não possuem cidadania de nenhum país, e acabavam por não ter direitos visto que nenhuma entidade se responsabilizava por eles.

Isso não quer dizer que eles não vivessem em algum país, afinal, em que lugar do mundo se está num não país? Apátridas portanto são aquelas pessoas que os Estados não aceitam como parte de sua nação mas que habitam no seu interior, e acabam sendo tratadas como um “problema”. No contexto europeu, que é onde Hannah Arendt viveu até ter que fugir devido à ameaça sofrida pelo Nazismo por ser judia, ela destaca justamente os Judeus como os “apátridas por excelência”, visto que eram presentes em todos os Estados, sendo mais ou menos aceitos em cada contexto. Eles não eram os únicos nesse contexto, somando-se também os armênios, ciganos, e comunidades menores. Muitos os viam como um “problema” que devia ser erradicado, seja pela sua nacionalização, e portanto sendo aceitos como membros dos Estados, ou pela expulsão.Ou pior ainda, pelo seu extermínio.

Foi pensando nesses apátridas que se elaboraram os Direitos Humanos dentro das Nações Unidas. Esta nova organização seria a responsável por cuidar daqueles que nenhum Estado quer cuidar, e garantir sua sobrevivência enquanto as nações determinam uma solução política para sua condição. Assim foi com os judeus europeus após o holocausto nazista. Nas palavras de Arendt:

“Depois da guerra, viu-se que a questão judaica, considerada a única insolúvel, foi realmente resolvida -por meio de um território colonizado e depois conquistado -, mas isso não resolveu o problema geral das minorias nem dos apátridas. Pelo contrário, a solução da questão judaica meramente produziu uma nova categoria de refugiados, os árabes, acrescentando assim cerca de 700 mil a 800 mil pessoas ao número dos que não têm Estado nem direitos.”

A ONU passou a não só legitimar a existência do recém formado Estado de Israel a partir da Resolução 181, na qual propõe uma partilha da Palestina, e da aceitação do novo país como membro pleno em 1949, como também se responsabilizou por financiar e gerir a população palestina em campos de refugiados. Podemos considerar os palestinos entre os primeiros na história a experimentarem este novo direito humanitário. Foi a partir destes novos campos de refugiados, e no cotidiano enfrentado pelos agentes humanitários, que a ONU desenvolveu seu método para lidar com os apátridas do mundo pós holocausto.

Para este trabalho, a ONU criou a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA - United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees), em 1949. Esta agência acolheu as centenas de milhares de expulsos de suas casas, lhes garantiu onde dormir, o que comer, medicina e educação. Inicialmente tinha a previsão de ser um projeto temporário enquanto se elaborava uma solução política para esta população refugiada que tornara-se um “problema”.

Porém, 76 anos depois, os mesmos campos de refugiados seguem de pé, e a condição de apátridas, refugiados, sem um Estado que lhes garanta seus direitos, se mantém. A ONU acabou se tornando fundamental para que Israel pudesse cometer sua limpeza étnica impune, assumindo seu custo, e tornando os palestinos os precursores desta nova categoria moderna de refugiados.

Este sistema é problemático se pensarmos que estas populações, expulsas de suas terras devido a conflitos, limpezas étnicas, genocídios, são recebidas em campos improvisados, de caráter temporário, mas que acabam ali vivendo às vezes por décadas, sem acesso aos supostos Direitos Humanos básicos previstos. A ideia inicial de apoiar estes migrantes enquanto não se soluciona o conflito que gerou seus deslocamentos foi se transformando numa agrupação de indesejados por nenhum país numa condição de subcidadania baixo o status de “refugiados”. Se a ideia dos Direitos Humanos era garantir com que todas as pessoas tivessem os mesmo direitos, na prática tornou-se uma diferenciação entre aqueles que possuem direitos garantidos por algum Estado, e aqueles que, na falta de uma cidadania, tornam-se refugiados e são forçados a esses campos, onde viverão de maneira indeterminada baixo a legislação da ONU. Uma diferenciação entre aqueles que têm direito aos direitos humanos, e aqueles que nem isso tem.

A discussão de Hannah Arendt sobre apátridas não foi resolvida pelo direito humanitário. Na verdade o que o sistema possibilitou foi categorizar essas pessoas de refugiadas, e “varrê-las para debaixo do tapete”, que no caso seriam esses campos de refugiados espalhados pelo mundo. Estas são respostas práticas para a ausência de uma solução política, que permita buscar uma resolução capaz de reassentar os refugiados de onde foram expulsos.

A normalização desta condição foi vista nas últimas olimpíadas de Paris, em 2024, quando desfilou a delegação de refugiados junto às outras 204 delegações. Afinal, estes refugiados são alienígenas? Ou nasceram em algum território representado pelas tantas bandeiras presentes no desfile? O que então faz delas serem refugiadas? O seu abandono por parte do mundo.

Se observamos a situação da Faixa de Gaza até um dia antes de iniciar este novo ciclo de violência, veremos que cerca de 1,7 milhão de pessoas eram classificadas como refugiados, o que correspondia a aproximadamente 70% da população total do território. Esses refugiados eram atendidos em 8 campos administrados pela UNRWA. Estas pessoas já viviam em condições precárias, com seu acesso aos direitos humanos severamente comprometido, e sem qualquer tipo de prestação de contas exigidas a Israel por ter colocado essas pessoas nesta situação.

No dia 7 de outubro de 2023 houve uma mudança significativa. Se até então os palestinos de Gaza viviam em sua maioria sob regime “humanitário”, que por si só já representa uma doutrina sistemática de exclusão global, a partir desta data, passaram a ser indiscriminadamente bombardeados e a própria ajuda humanitária passou a ser impedida de chegar. A própria “humanidade” dos palestinos foi colocada em questão. Seja pelas declarações do ministro da defesa de Israel, Yoav Gallant, ao chamá-los de “animais humanos”, ou como reportado pelo relatório das Nações Unidas de dezembro de 2023, que alerta para a desumanização dos palestinos por parte dos israelenses.

Se os palestinos estiveram no cerne da concepção do direito humanitário moderno, hoje eles inauguram um novo debate, que não é se o direito internacional humanitário funciona ou não, mas como o termo “humanitário” é compreendido, visto que é uma categoria que, apesar de soar objetiva, permanece relativa.

Essa desumanização não acontece apenas no âmbito discursivo, ou nas táticas militares. A naturalidade com que são transmitidas as imagens de palestinos mortos, despedaçados, amputados, doentes ou em situação de extrema fome e pobreza só normaliza a condição de sub-humanidade a que passaram a estar sujeitos. A psicanalista e pesquisadora Ana Gebrim define esta prática de política da indiferença, onde estas imagens que teriam por objetivo gerar empatia e mobilizar o mundo a tomar uma atitude a respeito, acaba por gerar anestesia, insensibilidade, indiferença e impotência diante do sofrimento.

Neste sentido, voltamos a uma situação similar à vivida pelas populações marginalizadas e desumanizadas momentos antes de se iniciar a segunda guerra mundial, quando o regime nazista buscava uma solução para o “problema” causado pela mera existência destas pessoas. Assim como naquele tempo, os palestinos vivem uma campanha massiva de desumanização, tem seu acesso aos direitos humanos negados há 76 anos, ainda vivem sob constantes bombardeios e chacinas, e em e especial na Faixa de Gaza, toda a população, indiscriminadamente, sobrevive graças à ajuda humanitária.

Semana passada, o parlamento israelense decretou o banimento da UNRWA dos territórios por ele controlados. Isso significa eliminar a única fonte de sobrevivência a essa população, e negar o direito dessas pessoas a serem ao menos consideradas humanas, e portanto possuírem uma assistência por parte da ONU. É a mudança do paradigma do refúgio para o paradigma do extermínio. E da mesma forma como o mundo se calou ao ver o holocausto nazista se configurar, hoje vemos a mesma situação em relação a um novo extermínio cujo alcance ainda se revelará.

Esta situação nos faz pensar, não apenas sobre os crimes cometidos por Israel, mas para a progressão e a falência do modelo de Direitos Humanos vigente. Até que ponto sua prática tem garantido a dignidade dessas populações marginalizadas? Na verdade observamos que ele tem se prestado mais a normalizar a exclusão, e possibilitar com que novos deslocamentos forçados e genocídios aconteçam, e que as Nações Unidas lidem com o fardo. Um modelo onde a suposta garantia desses direitos não é assumida por ninguém, apenas terceirizada, e assim, a exclusão e marginalização, apesar de mal vista, torna-se possível e ainda por cima viável.

O fato desta imagem de refugiados estar comumente associada a populações africanas ou árabes revela o caráter racista dos Direitos Humanos. Enquanto populações de países de primeiro mundo, de maioria branca, gozam de uma cooperação entre si onde migrações são recebidas por instituições governamentais, como foi o caso dos imigrantes ucranianos foragidos do conflito com a Rússia, os povos não brancos são designados aos campos de refugiados, em geral em locais inóspitos, e distantes dos países do norte.

A universalidade pela qual os direitos humanos se guiam ignoram as diferentes condições entre diversos povos, do legado deixado pela colonização e escravização, e pela constante interferência dos países do norte em países do sul global, o que gera todos estes conflitos sanguinários. A política humanitária acaba assumindo um papel de higiene social, forçando estas populações indesejadas a estes espaços de exclusão que representam os campos de refugiados.

Da mesma maneira que o holocausto nazista marcou a mudança da concepção do direito internacional, e fundou o paradigma dos Direitos Humanos, o atual genocídio em Gaza exige que refundemos e passemos a uma nova era de organização planetária. O direito internacional humanitário não apenas falhou em suas leis, ou em suas instituições. Quem falhou foi a ideia de “humanidade”. Ainda o racismo estrutural molda um mundo onde uns tem direito aos direitos, enquanto outros não.

O fato do Estado Judeu ter sido fundado no intúito de marcar esta reparacão, e hoje estar no cerne do novo genocídio mostra que não é apenas uma questão de engenharia política. A superação destes conflitos exige combater a estrutura racista que precede a ideia de uma universalidade comum aos seres do nosso planeta. E resolver esse trauma europeu onde sua estrutura de Estados-Nação não é capaz de englobar a pluralidade humana, e aquilo que não se encaixa acaba marginalizado. Assim foi com a “questão judaica”, exterminada do seu território, e seus restos enviados para a Palestina, na época uma colônia britânica.

Seguimos numa mesma espiral da história, que atingiu desta vez aos palestinos, e às populações árabes como um todo. E nos deparamos diante da oportunidade de resolver um problema que atinge a humanidade, principalmente aquela parte que em geral precisa se provar merecedora de direitos. A reivindicação pelo reconhecimento dos palestinos enquanto seres de direitos é sim revolucionária. A Palestina não é apenas um enclave geopolítico. Representa uma disputa sobre como vamos superar uma universalidade que esconde uma manutenção dos legados coloniais, e poder pensar em Direitos Humanos a partir da ótica daqueles que ainda não os detém.

  • Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

** Shajar Goldwaser é bacharel em Relações Internacionais na PUC-SP, integrante do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) da PUC-SP e membro do coletivo Vozes Judaicas por Libertação

Edição: Rodrigo Durão Coelho